Olá Gonçalo Rendeiro Pinho! Antes de mais muito obrigado pela tua disponibilidade e colaboração.
G: Obrigado à PTX pelo convite. É com muito gosto que partilho convosco algo da minha experiência na nossa área.
1- Como surgiu o gosto e o interesse pela área do exercício?
Eu sempre gostei do desporto em geral, com cerca de 12-13 anos pensava que um dia ia ser jogador de futebol, depois o Benfica ficou em 6º lugar e troquei o futebol pelo surf, Ahah… Mas mais em relação à área do exercício, a primeira vez que me inscrevi num ginásio tinha 15 anos, digo que me inscrevi, porque comecei a fazer algum trabalho de ginásio, sem grandes objectivos, era mais para conciliar com a escola e ter alguma actividade física regular. Só depois aos 18 anos comecei a treinar de forma “viciada”, até hoje. O que mais me cativou foi o facto de que realmente via resultados do treino, durante a adolescência sempre fui um rapaz bastante “desnutrido”, aquilo que agora chamam “late mature”, haha, quando comecei a treinar pesava à volta dos 60kg, e com um pouco mais de 2 anos de treino consegui chegar perto dos 75kg. Na altura estava a estudar Engenharia Civil, e comecei a ver-me a ler mais livros sobre treino do que física… Foi então que decidi que não queria continuar na área de engenharia e queria mudar-me para a área do exercício físico e principalmente o treino de força.
2- Quais as principais competências que um preparador físico deve reunir actualmente? Que concelhos gostarias de deixar aos colegas mais novos para que consigam alcançar o sucesso e a realização profissional nesta área?
Esta pergunta realmente é bastante complexa. A nossa área é bastante abrangente e dar uma resposta geral que englobasse toda a diversidade existente na nossa área seria impossível. Eu acho que não existe um caminho para o “sucesso”. Cada modalidade irá enfocar capacidades de um preparador físico que outras podem não necessitar de todo. Por exemplo, o controlo e gestão de carga de corrida não se aplica a modalidades que não têm corrida.
No entanto, existe conhecimentos de base que penso que sejam fundamentais. O primeiro será o pensamento crítico, nós trabalhamos numa ciência muito pouco desenvolvida, existem mais estudos científicos publicados nos últimos 10 anos do que nos últimos 100, estamos numa transição de que a denominação de “preparador fisico” será demasiado abrangente e iremos caminhar para a especialização. Isto já acontece lá fora, em Portugal estamos um pouco atrasados derivado a economia. Aqui o preparador físico ainda é visto como o que faz tudo sozinho.
A meu ver, será possível categorizar a nossa área em 3 diferentes “especialidades”
Strength & Conditioning (S&C) – Será a forma mais típica daquela que reconhecemos um preparador físico, esta “categoria” depois ramifica para as diferentes modalidades e em algumas modalidades também se pode diferenciar a parte de “ginásio” e “campo” como será o caso de desportos colectivos, nomeadamente, futebol, rugby, andebol, basquetebol, etc. O S&C deverá se destacar pelo domínio da arte de prescrever treino, ensinar os exercícios, motivar os atletas, mas principalmente por compreender o estímulo que está a ser aplicado ao atleta e o seu efeito agudo e crónico. Parece algo “fácil” mas na verdade aqui é onde o conhecimento do treinador é posto em “prova”, quais as variáveis de controlo que devo utilizar para monitorizar a resposta aos estímulos? Quando devo aplicar uma dose de treino perante o calendário competitivo? Se houver uma tendência para simplesmente “treinar por treinar” sem avaliar/controlar/monitorizar as respostas internas do atleta, dificilmente será possível antecipar um acumular excessivo de fadiga, ou evitar uma estagnação. Pior ainda, poderá se estar de forma indirecta a prejudicar outras variáveis, como por exemplo, realizar demasiado treino hipertrófico sem qualquer transfer, o que poderá realmente prejudicar o perfil de aceleração x velocidade. Por último, se nos basearmos apenas no feedback do atleta, eles muitas vezes não são criteriosos a dar a sua opinião, ou são demasiado enviesados pelo rendimento em competição, portanto, haverá uma tendência demasiado “directa” e irrealista do treino físico com a performance. Mais uma vez, levando ao ridículo, se o atleta marcar 2 golos, irá estar extremamente contente e haverá uma tendência para validar tudo aquilo que ele tem feito, no entanto se o mesmo atleta, na hora de finalizar falhar, poderá haver o pensamento oposto. É uma necessidade conseguir isolar o rendimento desportivo do desenvolvimento atlético.
Rehab Trainer – É uma especialização da área da preparação física relativamente ao return to play dos atletas de forma mais individualizada após o processo típico de fisioterapia. Esta é uma profissão algo cinzenta, vê-se muito os fisioterapeutas a realizarem esta função, daí o boom de fisioterapeutas a tirarem pós-graduações em S&C, no entanto, está em franca expansão a utilização de profissionais do exercício para o desempenho da mesma. A razão disso, a meu ver, deve-se ao facto de que existe uma necessidade de aplicação de treino com cargas físicas significativas (tanto de ginásio como de campo), com a respectiva gestão minuciosa daquilo que eles faziam previamente antes da lesão. Adicionalmente, é fundamental que os atletas consigam fazer um maior transfer possível dos gestos técnicos específicos antes de entrarem num contexto de maior “caos”, nomeadamente quando são introduzidos ao treino de equipa. Isto acaba por requerer uma atenção bastante detalhada de um profissional que venha a estudar as diferentes fases das lesões e consiga adaptar de forma progressiva o treino.
Sport Scientist (SS) – É uma “profissão” antiga, em que era utilizada de forma frequente na modalidade do cíclismo, mas só mais recentemente, tem vindo a ganhar o seu espaço no desporto profissional de modalidades colectivas, normalmente está associada a um grau de mestrado ou doutoramento na área do desporto. Aqui os conhecimentos comparativamente com S&C puderam não ser tão aplicados ao terreno, mas ambos “falam” a mesma língua. Normalmente, o SS dá um apoio vital ao S&C e Rehab Trainer elaborando modelos de controlo e gestão de cargas físicas. É também responsável pela elaboração de modelos de recuperação e monitorizar as variáveis de interesse que possam levar a acções. Os “skills” de um SS normalmente envolvem uma forte componente de análise de dados, como por exemplo, programação em R, Python, PowerBI, Matlab, etc.
Resumidamente, penso que será importante identificar onde nos queremos posicionar e começar a ganhar a experiência e o suporte cientifico da mesma. O mais dificil da nossa área é entrar nela, portanto, quando tiverem uma oportunidade, aproveitem.
3-De uma forma genérica, qual ou quais os principais aspectos a serem desenvolvidos na preparação física?
Mais uma vez, vai depender muito da modalidade, atletas de desportos colectivos na minha visão, deveriam treinar tendencialmente para a mínima dose efectiva no que toca a treino “extra”, exceptuando o rugby. A mínima dose efectiva seria treinar com o volume de treino mais reduzido possível mantendo adaptações positivas ao mesmo. Isto porque a maioria da sua disponibilidade física de treino deveria ser enfocada ao treino específico, que irá ter uma maior preponderância para o seu sucesso desportivo. Não obstante, será importante capacitar os atletas de bons níveis de força e optimização dos sistemas energéticos. Se realizar-mos uma avaliação que nos dê uma ideia das necessidades físicas, esta irá ajudar a determinar se um atleta deveria dedicar mais ou menos treino extra.
No caso de modalidades individuais, como o atletismo, aí penso que teremos de enfocar o treino tendencialmente para a máxima dose tolerável, o que será treinar o máximo possível sem lesionar o atleta e garantido que fisicamente o atleta continua a aumentar a performance. Isto porque a preponderância física para o sucesso desportivo é determinante.
4- Consideras haver aspectos que distinguem a preparação física para futebolistas em relação a atletas de outras modalidades?
Sem dúvida, cada modalidade é um mundo, começando pela optimização dos sistemas energéticos e a especificidade dos gestos técnicos. Não é por acaso que as modalidades têm lesões tipicamente associadas. Por exemplo, os futebolistas têm uma maior incidência de lesão nos posteriores e adutores, enquanto os tenistas têm no cotovelo, rugby e natação nos ombros.
Quando realizamos a preparação física dos atletas, aquilo que pretendemos é manter um atleta capacitado e a competir ao seu melhor nível, portanto, um primeiro passo será minimizar ao máximo a possibilidade de ocorrência de lesão, ao mesmo tempo que se tenta potencializar fisicamente. Derivado a especificidade técnica da modalidade, um futebolista irá necessitar de uma maior atenção aos membros inferiores e core, predominantemente em movimentos rápidos e explosivos.
Uma das maiores dificuldades da preparação física de um futebolista está relacionada com o calendário competitivo. Normalmente uma equipa joga uma ou duas vezes por semana, isto tem um impacto enorme naquilo que é a preparação física de um atleta de futebol. O desgaste físico acaba por ser enorme, onde a janela de oportunidade para aplicar estímulos de força são bastante reduzidos e precisam de ser minuciosos sob risco de quando em excesso prejudicam mais do que beneficiam.
5- A prevenção de lesões nos isquiotibiais sempre foi uma preocupação ao nível da preparação física específica para o futebol. Hoje em dia fala-se muito no treino excêntrico. De acordo com a tua experiência tem algum input, e evidência mais recente, que possa acrescentar a esta tendência?
Infelizmente, a nossa área é bastante propícia a modas, a falta de compreensão da biomecânica por vezes leva a uma supervalorização de algo que já existia. Neste momento aquilo que vemos não é uma aplicação do treino excêntrico, é maioritariamente um marketing agressivo de equipamentos que “vendem” treino excêntrico.
Um agachamento com barra, tem a componente excêntrica, um peso morto com barra tem uma forte componente excêntrica. Não é por treinar numa máquina isoinercial – conhecida tipicamente por “yoyo” que estou a treinar excêntrico. Porque inclusive o atleta pode não fazer força na fase excêntrica e simplesmente “deixar-se ir”.
Mas respondendo à pergunta, se o treino excêntrico é importante. Eu considero que sim, a fase excêntrica do movimento é uma parte fundamental onde ocorrem adaptações que não ocorrem em treinos só com a componente concêntrica. Algumas das diferenças da componente excêntrica para a concêntrica são desde logo a tensão mecânica por fibra muscular. Sendo que aquilo que pretendemos prevenir são roturas musculares, maioritariamente derivada a uma tensão mecânica superior a que o tecido aguenta, esse treino excêntrico poderá potenciar o músculo a aguentar uma maior tensão antes de romper. No entanto, não podemos esquecer que o treino excêntrico irá fragilizar de forma aguda o músculo, portanto, se eu aplicar um treino excêntrico e imediatamente depois for fazer um jogo, muito provavelmente o jogador irá ter um maior risco de lesão. Mais uma vez a experiência e compreensão da dose que estamos aplicar, com o controlo dos estímulos que o atleta irá receber até estar completamente recuperado dessa dose é fundamental.
Em relação aos equipamentos das isoinerciais, penso que têm uma grande utilidade, principalmente por estimularem o treino de força com a máxima intenção do movimento na fase concêntrica (as isoinerciais não se restringem só a fase excêntrica) e se bem realizada, têm uma transição rápida e forte da fase concêntrica para a excêntrica, algo que com o treino de barra isso não acontece.
6- Idealmente, como se deve processar a comunicação entre o treinador principal e os preparadores/ recuperadores físicos?
Eu penso que não existe uma resposta directa, vai depender da estrutura, do treinador e do modelo implementado pelo clube. Normalmente, existe um coordenador do departamento e este estará responsável por comunicar pontos-chaves que puderam ter impacto directo no treino específico do treinador, como por exemplo, retirar um atleta do treino derivado a um excesso de carga. No entanto, eu acho fundamental a equipa técnica ser dotada de um preparador físico de campo, para que na hora de conceber os exercícios estes estarem ligados com a gestão de cargas físicas elaboradas previamente. Isto só é posto em prática quando existe confiança entre departamentos e profissionais, portanto é muito importante saber gerir conflitos e ter uma comunicação aberta.
Gonçalo Rendeiro Pinho
– Licenciatura em Ciências do Desporto, pela universidade Lusófona,
– Mestrado em Ciências do Movimento Humano pela universidade de Maastritch,
– Doutorando em biomecânica na FMH
Colaboração em vários centros de investigação, como CHERC da Universidade Exeter, Laboratório do Rendimento Humano da Universidade de las Palmas de Gran Canaria, Centro de Alto Rendimento da Universidad Pablo d’Olavide
Atualmente cofundador da GoAthlete,
Preparador físico da equipa de principal de futebol do Estoril Praia,
Preparador físico da equipa de rugby CDUL,
Orador convidado em algumas formações e cursos, nomeadamente na pós graduação de Strength and Conditioning da FMH.