Hoje em dia as crianças têm cada vez menos oportunidades de explorar o corpo de forma livre, de conseguir conhecer as suas verdadeiras potencialidades, de se desafiarem, de inventar novas formas de brincar, ultrapassar obstáculos e estimular os seus sentidos. Em tempo de pandemia a inercia agrava-se enclausurando as crianças entre quatro paredes, assim nesta fase os mais pequenos entram em privação ocupacional, uma vez que lhes é negada a hipótese de brincarem sem barreiras, físicas e sociais.
Acrescendo a esta problemática, as atividades são substituídas por horas de écrans, quer sejam telefones, tablets, televisão, computadores, em atividades académicas, ou de lazer que limitam as potencialidades das crianças. Hoje em dia sabe-se que a excessiva utilização de écrans tem grande influência na qualidade do sono, no desencadear de comportamentos disruptivos ou mesmo agressivos, criando crianças mais irritáveis e com menos capacidade de se satisfazer com outro tipo de atividades. Os dispositivos eletrónicos estimulam com grandes doses de estímulos visuais que têm grande influência no cérebro das crianças, estimulando os mecanismos de recompensa imediata (através da dopamina) que vai facilitar a dependência destes aparelhos. Para além do anteriormente referido, a utilização dos dispositivos eletrónicos promove a passividade, quando as crianças os estão a usar, não estão a desafiar-se em termos motores, não estão a criar, não estão a interagir, o que pode influenciar o seu desenvolvimento quando o seu uso é descontrolado. As crianças em particular precisam de movimento, de desafios, de aprender novos padrões motores, de envolver o corpo e a mente em conjunto.
Quando uma criança está a comer enquanto está em frente de um telemóvel, não lhe está a ser dada a oportunidade de experienciar a refeição, de olhar para os alimentos, de os cheirar, de os tocar, de se sujar, de imitar os outros, de criar brincadeiras sociais através dos alimentos e de aprender regras sociais importantíssimas para o seu futuro. Tornam-se dependentes e não estão despertas ou envolvidas no que está a acontecer.
Para o desenvolvimento normal de uma criança é importante que exista o tempo e o espaço para que ela se consiga movimentar, observar para perceber o que está a acontecer, imitar, explorar de forma acompanhada, explorar de forma autónoma. A exploração do corpo é a base para o desenvolvimento, ao explorarem as várias potencialidades do seu corpo vão perceber que existe um tronco que está ligado à cabeça, que existem membros superiores e inferiores que podem interagir entre si. Ao integrar a várias partes do corpo a criança vai conseguir olhar, vai conseguir mover-se no espaço, vai conseguir vencer a gravidade, vai conseguir alcançar objetos, vai conseguir manipulá-los, de modo a interagir com o meio.
Esta exploração é fundamental para o desenvolvimento dos nossos sentidos, e só com uma boa integração dos mesmo somos capazes de estar envolvidos de forma organizada num contexto rico em estímulos sensoriais, sejam eles gustativos, olfativos, auditivos, visuais e tácteis. A integração sensorial é um processo neurológico que organiza a informação que recebemos do nosso corpo e do mundo que nos rodeia, para depois utilizarmos na nossa vida diária, este processo ocorre no sistema nervoso central e acontece de forma inconsciente. Quando falamos de integração sensorial falamos de 7 sentidos (embora saibamos que existem mais), os anteriormente referidos acrescentando ainda o sistema propriocetivo e o sistema vestibular.
O sistema vestibular é o sistema espacial, do movimento, do equilíbrio e que combate a gravidade que nos puxa permanentemente para baixo. Ajuda-nos a perceber se estamos em movimento ou se estamos parados, se estamos na vertical, deitados ou de cabeça para baixo, assim como nos ajuda na coordenação dos olhos, perceber se os objetos que estão à nossa volta estão em movimento ou parados em relação a nós. É um dos responsáveis pela manutenção do tónus muscular, em especial o tónus extensor que nos ajuda a manter o equilíbrio na posição de pé ou sentado, sem que colapsemos no sentido da gravidade. Por outro lado, tem um papel fulcral na coordenação dos olhos quando apanhamos um objeto que vem na nossa direção, quando estamos a ler um livro e temos que seguir as linhas ou quando usamos os dois lados do corpo em conjunto.
Este sistema pode e deve ser estimulado quando uma criança anda de baloiço, quando desce um escorrega, quando anda de skate (deitado, sentado ou de pé), quando salta do cimo de uma pedra para o chão, quando anda às voltas para se sentir tonto, ou quando anda de bicicleta. Em casa também se podem proporcionar estímulos vestibulares ao arrastar uma criança numa manta enquanto ela se mantém sentada em cima dela, quando uma criança salta do sofá para um puf, quando anda numa rede pendurada, quando se deita nos lençóis e os pais a balançam, quando brincam ao avião com os pais ou quando fazem jogo de equilíbrio.
O sistema propriocetivo dá-nos a noção do nosso corpo, de como se move, como os nossos membros superiores e inferiores se correlacionam uns com os outros, que partes do nosso corpo estão imoveis e quais as que estão em movimento. É um dos sistemas que nos dá a consciência do nosso corpo. Os recetores deste sistema estão nos músculos, articulações e ligamentos e estão permanentemente a monitorizar as diversas partes do nosso corpo, para temos uma imagem de como este está posicionado em cada momento. É fundamental para a graduação da força quando interagimos com os outros ou com os objetos (ex: usamos forças diferentes quando seguramos uma garrafa de água cheia ou vazia, se é de plástico ou de vidro), tem um papel crucial na coordenação motora grosseira e fina, assim como na capacidade de organizar e adaptar o nosso corpo para ultrapassar obstáculos que nos surjam.
Este sistema é estimulado sempre que existe atividade muscular ativa, quando uma criança está a saltar um obstáculo, a subir uma parede de escalada ou trepar algum equipamento de um parque infantil. Em casa existem muitas situações que podem facilitar a integração do estímulo propriocetivo, quando uma criança joga às escondidas e se coloca em locais apertados, quando se cria um circuito de obstáculos com cadeiras, em que a criança pode subir, passar por baixo, saltar, escorregar ou arrastar esta peça de mobiliário, pode também usar pufs para criar uma superfície de impacto, pode-se brincar com cordas para puxar, ou usar almofadas do sofá para criar superfícies instáveis.
Por último vamos referir o sistema táctil, já conhecido de todos nós e que tem um papel importante no desenvolvimento do próprio corpo e dos limites corporais. É primordial na criação de vínculos emocionais, é através do toque que os pais acalmam os seus filhos, que lhes dão colo, lhes dão segurança para poderem explorar o mundo. Por outro lado, um toque agressivo, ou doloroso pode ser interpretado como hostil e criar uma sensação de insegurança. As crianças exploram o que os rodeia através do toque em conjunto com a visão, quando olham e sentem a mão na cara, quando seguram um brinquedo, olham para ele e o levam à boca ou quando sentem um botão entre os dedos para abotoar a bata da escola. Assim este sistema é fundamental para a aquisição de conceitos, tal como a noção de forma, tamanho, dureza, textura, etc.
Este sistema é ativado sempre que algo entra em contacto com a pele ou cria algum tipo de pressão. É fundamental que o ambiente das crianças seja rico em estímulos tácteis, privilegiando o contacto com a natureza, quer seja com areia da praia, com terra da horta ou no mato, ou no contacto com a casca ou as folhas de uma árvore. Mais uma vez em casa podemos enriquecer o contexto com atividades que aumentem a estimulação táctil, durante o banho podem-se usar esponjas com diferentes texturas, espuma da barba, pinceis, etc. Também a cozinha pode e deve ser um ambiente partilhado, onde se podem fazer biscoitos, massa de pizza, massa de pão, que deve ser manipulado pelas crianças e criar momentos importantes tanto para as crianças como para os pais.
Nesta época que estamos a viver, mais do que nunca, é importante sermos criativos e usar o que está ao nosso alcance, para enriquecer a vida das crianças com estímulos que os permitam desenvolver com harmonia, seja em casa ou em momentos no exterior é fundamental que haja um aporte sensorial variado e que crie desafios ao seu alcance.
Os sistemas sensoriais interagem de forma organizada e ordenada entre si, para que possa existir uma harmonia entre a informação obtida sobre as condições do nosso corpo em consonância com o meio envolvente. Só desta forma podemos estar envolvidos, organizados e à altura dos desafios que nos são propostos. Para uma criança estar atenta numa sala de aula, tem de manter a postura de sentada contra gravidade, manter os olhos estáveis enquanto olha para o quadro e segurar a caneta com os dedos e escrever o que lhe é pedido. Quando uma criança tenta pela primeira vez subir a uma rocha, tem de olhar para a rocha, perceber o tamanho em relação ao seu próprio corpo, tentar perceber a rugosidade da rocha, perceber qual o melhor sítio para colocar o pé e a mão e preparar o seu corpo para o efeito.
Para que haja harmonia no desenvolvimento da criança, de modo que ela esteja preparada para os desafios que se impõe ao longo das várias etapas, é importante que todos estes sistemas se vão desenvolvendo interligados com experiências que se vão acumulando ao longo da vida. Quanto mais experiências forem vividas, mais preparada estará. Para a criança perceber que existe perigo e para saber como o evitar, ela tem de o viver (de forma controlada). Antes da criança se sentar a fazer atividades académicas, ela tem de viver o seu corpo das mais variadas formas e interagir com objetos de inúmeras maneiras.
Diogo Pimentel dos Santos
Terapeuta Ocupacional (Pediatria) / Pediatric Occupational Therapist