José Eduardo J. Sousa Uva, 51 anos, natural de Faro, com um longo e sólido percurso na educação educação física, tem prestado um grande contributo para o Desporto em Portugal. Responsável pela captação, formação e desenvolvimento de muitos jovens no atletismo, é sem dúvida um nome incontornável do treino de Alto Rendimento e do desporto no nosso país. Trabalha com a atleta Patrícia Mamona há mais de 20 anos e conta com presenças nos Jogos Olímpicos de Pequim, Londres, Rio e Tóquio.
Antes de mais obrigado ao José pela cortesia à PTX bem como a todos os amantes do desporto e profissionais do treino que acompanham o nosso Blog.
1- Como surgiu o atletismo na sua vida?
No sétimo ano de escolaridade a minha professora de Educação Física notou algumas capacidades de resistência em mim. Enquanto os restantes alunos faziam a aula de EF normal eu, por indicação dela, ia correr em volta da escola. Com este “treino” fui segundo classificado no corta-mato da escola João de Deus em Faro e nos anos seguintes venci duas vezes esta mesma corrida. Após o primeiro “brilharete”, com 13 anos de idade, fui convidado para integrar a equipa de atletismo do Grupo Desportivo da Penha em Faro.
2- Pode falar-nos sobre o seu percurso até chegar ao mundo da alta competição?
Após seis anos de atletismo como praticante e de ser confrontado com o facto de ser um atleta apenas de nível regional, comecei a ter curiosidade pela preparação/treino de atletas e isso levou-me a querer ser professor de Educação Física. Depois de terminar a licenciatura no Porto regressei a Faro para lecionar e ser responsável pelo grupo de atletismo do Desporto Escolar da Escola Joaquim Magalhães.
Em 1995 mudei-me para Lisboa e ofereci os meus serviços de jovem treinador ao clube Juventude Operária de Monte Abraão em Queluz. Aqui, juntamente com a equipa técnica do clube realizamos um vasto trabalho de captação e formação de talentos levando o clube a ser uma referência da formação jovens atletas em Portugal.
Deste grupo de jovens atletas fazia parte a Patrícia Mamona, atleta que acompanhei desde a primeira hora, por todas as etapas da sua formação, até aos dias de hoje. Participámos juntos em provas regionais, nacionais e internacionais para jovens. A Patrícia participou no Festival Olímpico da Juventude Europeia, Mundial de Juvenis, Europeu e Mundial de Juniores, Europeu de Sub23 e finalmente em Europeus e Mundiais de Seniores, assim como em três Jogos Olímpicos e inúmeras etapas da Liga Diamante.
O nosso crescimento foi acontecendo de forma paralela, simultânea e complementar ao longo de 20 anos de trabalho conjunto, permitindo que a evolução de cada um pudesse alimentar os sonhos de ambos em levar a Patricia a saltar mais longe e em continuar a aprender mais.
3- Caracterize o dia-a-dia de um coordenador de uma academia de atletismo com a dimensão do Sporting?
Neste momento já não desempenho as funções de coordenador da Academia de Atletismo do SCP, por isso não queria alongar-me muito neste assunto, no entanto posso deixar alguns tópicos para que os leitores não fiquem em branco.
Sendo a Academia de Atletismo do SCP a escola de formação do clube que recebe todos os jovens que desejarem praticar atletismo com idades entre os 6 e os 19 anos, enquanto seu coordenador, fui responsável por:
Contratação dos treinadores
Elaboração dos horários dos diferentes grupos de trabalho
Realização do plano anual de trabalho/atividades da Academia
Coordenador de todas as atividades realizadas pela equipa técnica (ações de promoção da modalidade e do clube, ações de captação de atletas, observação de atletas talentos em situações particulares, apoio a escolas e colégios para a realização de eventos desportivos, estágios e training camps e competições de âmbito regional)
Contacto com atletas, pais e encarregados de educação
Angariação de novos locais de treino e novos treinadores
Angariação de patrocinadores.
4- Como se consegue estabelecer uma relação de confiança e desenvolver um trabalho tão duradouro e produtivo como o que tem desenvolvido com a atleta Patrícia Mamona?
Penso que no atletismo, uma relação de confiança entre treinador e atleta é estabelecida, sobretudo pela evolução anual do atleta. Isto é, se o treinador tiver a capacidade de fazer o seu atleta evoluir ano após ano, essa confiança vai-se cimentando até se tornar inquebrável. Esta tarefa é relativamente simples enquanto o atleta é jovem, pois o seu crescimento, maturação e desenvolvimentos das suas qualidades físicas fazem com que, mesmo com um processo de treino com menor qualidade, o jovem atleta possa evoluir. O grande desafio à relação de confiança entre ambos acontece quando o atleta se torna adulto e o seu crescimento físico termina. Esta fase é particularmente desafiante para treinador e atleta e coincide com a fase onde vários atletas abandonam a modalidade, trocam de treinador ou simplesmente deixam de evoluir. Por isso costumo dizer aos atletas que o treino a sério começa aos 20 anos, idade em que infelizmente em Portugal a esmagadora maioria desportistas abandona a prática regular. É a partir desta idade que a qualidade do treinador, atleta e sobretudo do processo de treino se tornam vitais. Os treinadores e atletas devem estar preparados para que os seus laços de confiança sejam postos em causa e que as dúvidas tomem o lugar das certezas. Faz parte das funções do treinador competente e informado, identificar esta fase, prepara-se para ela, mas sobretudo, ser capaz de ultrapassá-la conseguindo que o atleta evolua nas suas marcas ano após ano. Se o conseguir, treinador e atleta construirão uma relação de confiança que nada nem ninguém conseguirá quebrar.
5- O que acha que deve ser melhorado em Portugal para que o desporto português continue a conquistar medalhas e títulos nas principais provas?
A velha desculpa das condições serem inferiores às dos outros países já não é verdadeira, pelo menos no local onde treino. No Centro de Alto Rendimento de Atletismo do Jamor temos todas as condições para preparar atletas para o mais alto nível, nada nos falta. Outro pilar muito importante é a formação dos treinadores e penso que estamos cada vez melhores. Os melhores treinadores portugueses estão muito bem formados e informados, comunicam entre si e aprendem juntos, fruto do respeito que têm uns pelos outros e da noção da tarefa dificílima que enfrentam. Para mim é um privilégio poder trabalhar no CAR – Atletismo do Jamor e poder contactar e aprender todos os dias com os meu colegas treinadores das mais diversas especialidades do atletismo.
Para mim, neste momento, o elo mais fraco do atletismo português e o que atrasa o seu crescimento, são os dirigentes e as políticas implementadas superiormente. Apesar de termos treinadores cada vez mais bem preparados continuamos a ser dirigidos (salvo raras exceções) por pessoas com boa vontade, mas sem formação específica e sobretudo sem avaliação de desempenho. É urgente para o atletismo e para o desporto em geral que os dirigentes sejam também de Alto Rendimento e que foquem a seu desempenho em servir os atletas e a modalidade ambicionando mais do que apenas perpetuarem-se no poder e gerirem a modalidade apenas com o dinheiro público disponibilizado anualmente pelo orçamento de estado.
6- Que palavras gostaria de dirigir a todos os atletas que perseguem medalhas e nem sempre vêem o seu esforço coroado com esse êxito?
Trabalhar muito e bem compensa! Pode demorar, mas compensa!
Procurem o melhor treinador da vossa disciplina e trabalhem de forma séria e abnegada, confiem no processo.
Centrem o vosso êxito em vós próprios e não em adversários, títulos ou medalhas. Procurem ser atletas de alto rendimento 24 horas por dia e não apenas durante o tempo do treino.
Descanso e vida regrada também são treino, formatem o vosso dia para recuperar do treino que acabaram de realizar e potenciar o próximo.
É difícil, mas é possível conciliar o treino de alto rendimento com os estudos e/ou trabalho. É uma questão de gestão do tempo e optar por incluir no dia a dia apenas atividades exclusivamente necessárias.
7- Que conselhos gostaria de deixar aos jovens que ambicionam tornarem-se treinadores de atletas de alta competição?
Estudem muito! Mantenham-se bem informados sobre a vossa modalidade. Fiquem ao corrente do que de melhor se faz no mundo na vossa modalidades e especialidade.
Não se isolem, a troca de ideias e de experiências é a melhor e mais rápida forma de aprender e evoluir. Se for necessário ofereçam-se para serem adjuntos ou estagiários de um treinador experiente.
Pensem o processo de treino, planifiquem, não decidam o que vão fazer apenas no momento do treino. Com o tempo irão criar a vossa própria metodologia ou programa de treino.
Mantenham o processo organizado e controlado.
Sejam honestos com vocês próprios, quando não souberem perguntem a opinião de outro ou outros treinadores.
Todas as opiniões são bem-vindas, especialmente as críticas. Peçam sempre a quem der uma opinião para a justificar, mas pensem pela vossa cabeça, reflitam sobre o que ouviram e decidam ponderando os prós e os contras.
8- O desporto escolar é a porta para muitos dos nossos jovens terem um primeiro contacto com um determinado desporto. Contudo parece ter ocorrido um desinvestimento nessa oferta assim como na educação física, estruturante, para a inclusividade e acesso à prática desportiva. De que forma acha que poderíamos reverter esta situação? Mais investimento ou maior ligação entre a própria escola e os clubes?
Penso que a resposta é maior ligação entre a prática de Educação Física na escola, o desporto escolar e os clubes.
O atletismo é um desporto complexo, composto por muitas especialidades completamente diferentes. Em primeiro lugar temos de capacitar todos os professores de EF para ensinar as especialidades do atletismo que fazem parte dos programas oficiais. Em muitos casos, infelizmente os professores apenas medem o que os alunos saltam, lançam ou correm. Cada especialidade tem uma exigência técnica que leva tempo a adquirir e que impede uma evolução imediata do aluno e consequente motivação para a sua prática.
Por outro lado, é necessário refletir sobre os horários dos treinos dos grupos/equipa do desporto escolar para que estes possam potencialmente servir toda a população escolar e não apenas algumas turmas. É necessário também remunerar dignamente os professores responsáveis pelos grupos/equipas que participam em competições ao fim de semana ou dão mais horas de treino que o convencionado de forma a obter melhores resultados ou servir mais alunos da escola.
É também necessário estreitar de forma clara e definitiva as relações entre as escolas, clubes e federações para que os talentos descobertos na aula de EF e enviados para os grupos/equipa do desporto escolar possam dar continuidade à sua atividade desportiva num clube com melhores condições que a escola e não se percam no percurso entre estes três pilares fundamentais do sistema desportivo.
9- O desporto de alta competição e as lesões são uma realidade bem presente, acredita que possa existir lugar a um trabalho complementar, primário – preventivo, para a diminuição dessa situação? Nomeadamente um trabalho de treino que vise a melhoria da tolerância dos vários tecidos (músculos)?
Acredito que cada atleta de alto rendimento deve ter ao seu dispor uma equipa técnica também de alto rendimento. Uma equipa de profissionais com experiência em desportistas de alto rendimento.
Neste momento, quer os principais clubes portugueses, quer o Comité Olímpico de Portugal ou a Federação Portuguesa de Atletismo têm equipas multidisciplinares com Médicos, Fisioterapeutas, Nutricionistas, Psicólogos e Biomecânicos, capazes de servir o atleta e o treinador nas principais áreas que complementam o Alto Rendimento. A prevenção de lesões é uma tarefa do atleta, treinador e dos restantes elementos da equipa, cada um na sua área.
José Eduardo J. Sousa Uva
- Licenciado em Ed. Física e Desporto, opção de Treino Atletismo, na Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física da Universidade do Porto
- Professor de Educação Física na Escola Secundária Professor José Augusto Lucas em Linda a Velha, Oeiras
- Treinador de atletismo nível III – Saltos, no Sporting Clube de Portugal
- Responsável pelo setor de Saltos Horizontais do SCP
- Presença como treinador nos JO de Pequim, Londres, Rio e Tóquio