1- Olá caro colega Paulino Moreira, acreditas que, de um modo geral, o Fitness em Portugal tem evoluído nos últimos 10 anos?
Paulino Moreira – Não conseguirei ser breve a responder a essa questão. Desde logo, creio que a resposta deverá ter em conta a colocação de outra pergunta: quais os parâmetros que indicam a evolução ou não do sector? Caso contrário, uma vez mais, andamos à mercê de apreciações pessoais e dificilmente se traçam estratégias globais adequadas.
Infelizmente o sector do fitness em Portugal carece desses instrumentos de medida. Porém, creio que já foi dado um importante passo com o lançamento do Barômetro do fitness nacional. Obviamente não responde a todas as nossas questões mas apesar disso já ajuda a fazer algumas considerações lógicas.
Repare-se que em 2018 a maioria dos gestores aguardavam com otimismo o ano seguinte com respeito ao lucro /crescimento. E de facto, no geral dos últimos anos os dados demonstraram isso mesmo. Além disso o número de clubes aumentou exponencialmente! Ora, visto desta perspectiva singular (económica), poderíamos concluir precipitadamente que o fitness evoluiu muito nos últimos anos.
Porém, sobre esse ponto, sem querer alargar mais, pergunto: em que medida essa evolução se ficou a dever às estratégias adotadas pelo sector ou em boa parte à recuperação económica pós crise de 2010? Ou seja, quanto pesou a conjuntura económica favorável para o otimismo de alguns quando afirmavam até há 6 meses atrás que “o fitness está de boa saúde”? Ainda assim, suponhamos que esse “sucesso” se deve às estratégias dirigidas. Então aí o que dizem do facto do fitness chegar apenas a 5% da população? E que desses 5%, quase 70% abandonar nos primeiros meses? Estes números podem ser interpretados de maneira relativa, ou seja, da maneira que cada qual lhe convém. Mas se considerarmos as taxas elevadas de sedentarismo que é das piores do mundo, creio que aqueles 5% de adesão dos quais quase 70% abandona ao fim de meses, ganham um significado…
É que a culpa não pode ser sempre das tutelas, ou daquela conveniente entidade etérea designada de “falta de cultura desportiva”, ou da menor “etiqueta” da rececionista do clube, ou do PT que ainda não aplica o DESC! Estas justificações não serviram durante anos. Há qualquer coisa de errado aqui. Se o fitness tem como propósito a saúde e esta diz respeito a toda a comunidade, então o fitness tem uma missão social.
Logo, se só chega a 5% da população e a taxa de abandono é alta, não está a cumprir com o seu propósito e o potencial enquanto atividade económica está muito aquém daquilo que pode vir a dar. Depois, creio eu, o fitness tem um problema de definição do seu “objeto”. A sua intervenção está mal circunscrita para a maioria, pois caso contrário não se verificaria todo este apelo à novidade que tem sido galopante nos últimos anos!
Esta área tem sido pródiga em profanar conteúdos e, pior, perverte-los, colocando por vezes em risco a integridade dos praticantes! Seria desejável mais filtro e isso só se consegue com mais ceticismo, mais ciência, ou seja, mais sentido crítico. E para desenvolver esse tipo de raciocínio é preciso apostar em formações de qualidade e no estudo individual. É que não há outro remédio. Felizmente há profissionais que o têm feito, mas são ainda uma franja pequena. Evolução pressupõe melhoria e aperfeiçoamento. Posto isto, a minha posição é muito clara: o fitness, de modo geral, não evoluiu nos últimos 10 anos. As melhorias que ocorreram são insuficientes em número.
2- Consideras que a maioria dos profissionais do exercício que estão há algum tempo no mercado foram ficando efetivamente “mais experientes” ou tornaram-se apenas “mais velhos” ?
Paulino Moreira – Seria injusto generalizar, porque de facto há treinadores com alguns anos disto que nunca pararam de investir em formação e estudo. Alguns são dos melhores formadores em Portugal, publicam conteúdos nas redes sociais, são autênticos livros abertos.
O tempo que dedicam e as fontes em que se baseiam faz-me crer que dificilmente lá fora possa haver muito melhor. Outros são mais recatados e isso não significa que não sejam também excelentes treinadores. No entanto, a verdade é que os treinadores com 10 ou mais anos são uma percentagem muito pequena daqueles que buscam formação. São também aqueles que tendem a resistir mais às mudanças e à transformação de um fitness que precisa de mais evidências científicas antes de debitar tantas certezas. Isso é natural.
A ciência é muito gira quando confirma as nossas crenças, mas quando dá uma marretada nos nossos pilares mais antigos é uma chatice. E isso não combina com egos engordados ao longo de anos. Penso que muitos fogem inconscientemente a esse confronto desagradável das suas mais enraizadas crenças com as evidências. Além disso, penso que ainda se faz uso da antiguidade como sinónimo de credibilidade, o que não tem nada a ver. Isso não acontece noutras profissões relacionadas com a saúde. Sim, a experiência também pode contar alguma coisa, se e só se, o indivíduo tiver ao longo desses anos uma atitude de sistemática revisão e reconsideração sobre o seu conhecimento e atuação no tereno, respetivamente. Mas isso é um processo doloroso e dá trabalho.
Caso contrário acumulam apenas anos. São meros “treinadores cheios de vícios” com respostas finalizadas, pois isso inconscientemente dá segurança, mas é exatamente o oposto das ciências do treino que nos dão respostas de carácter transitório. Entretanto, não consigo esconder a minha fé inabalável nas novas gerações de treinadores. Essa foi uma das razões que me fez aceitar ser formador.
3- Como encaras o facto de no mundo da formação se ensinarem conteúdos/ princípios tão distintos? Qual será o caminho para uma posição mais consertada e pedagógica, que ajude os profissionais a “separar o trigo do joio” e trabalhar da forma mais responsável e consciente?
Paulino Moreira – Eu sinceramente não sei se essa regulação passa pela criação de uma ordem profissional ou outra entidade soberana aparentada que ponha lá o carimbo da credibilidade. Não sei mesmo. Parece-me que as Ordens só atuam depois dos profissionais se mexerem e insurgirem contra as más práticas. Há vários exemplos disso noutros sectores. Ou seja, em primeiro acredito na eficiência da auto-regulação quando é feita pelos pares e no efeito contagiante ou coercivo das opiniões que resultam daí. Os conteúdos programáticos das formações são expostos publicamente, logo, alvo de escrutínio se houver real vontade.
A filtragem acabará por acontecer. Temos esta atração pela burocratização e neste país sabemos bem o que resulta daí… Esperar que venha um organismo ou órgão de Estado resolver aquilo que se passa mesmo em frente ao nosso nariz é sinónimo de nos demitir-mos de um empreendimento social que diz respeito a qualquer profissional sem exceção. Deveríamos ter essa obrigação moral de denunciar ou pelo menos interpelar as práticas irresponsáveis.
No entanto, quando olho para a atribuição das cédulas profissionais concluo que foi um mero processo político e não técnico. Facto que me faz questionar se uma Ordem profissional nesses casos não seria o mais adequado. Talvez que o problema das Ordens seja quando se deixam infetar pela política.
4- Consideras que o nosso setor conseguiu adaptar-se e ultrapassar os obstáculos que resultaram da pandemia?
Paulino Moreira – Nem pouco mais ou menos. Contudo, parece-me que aqueles que já trabalhavam de forma responsável e de encontro às reais necessidades do seu público e/ou que não dependiam de grandes cadeias, sentem menos os efeitos da crise ou nem chegarão a tê-la. À exceção, claro, daqueles dois meses negros. Mas é apenas uma impressão minha. É tudo muito recente. Em tempos de crise é preciso refletir. Por isso, este é também o momento de se perceber que importância temos para as pessoas e sobretudo pode ser a oportunidade de se fazer as reformas que o sector tanto precisa.
5- Que desafios se colocam tanto aos profissionais que iniciaram a sua carreira de personal trainer nos últimos 2 anos como os que estão no mercado há mais tempo?
Paulino Moreira – O maior deles todos será a luta contra a desinformação veiculada nas redes e a credulidade do público. Coisa que sempre aconteceu, não sejamos inocentes. Mas os meios de hoje permitem que a informação se difunda mais rapidamente e em maior escala. Será transversal a todos os sectores da saúde e o nosso não será exceção. No entanto, estou confiante que se exercermos os valores da verdadeira educação física e nos recordarmos que esta não dever ser circunscrita apenas à escolaridade obrigatória, podemos ter um efeito transformador no sentido crítico do público. Mesmo que isso seja uma utopia, o nosso posicionamento nem pode ser outro. Tem de haver sentido pedagógico e de missão.
6- Como achas que podemos valorizar e credibilizar a nossa profissão junto dos outros profissionais de saúde e popularizar o treino de força junto da população, especialmente as faixas etárias que menos possibilidade, por diversas ordens, têm de o praticar?
Paulino Moreira – Primeiro temos de estar abertos ao diálogo e ao cruzamento de informação com os outros. A tal multidisciplinaridade. Mas para que isso aconteça é necessário falar a mesma linguagem dessas pessoas, ou seja, é imperativo o domínio elevado de disciplinas basilares como anatomia, fisiologia, biomecânica e, porque não, cultivar-nos noutros campos mais gerais de modo a conferirem sentido a esses conhecimentos.
Depois, em segundo lugar, antes de emitir-mos tantas certezas, estabelecer relações de causa/efeito precipitadas ou correlações que só existem na nossa cabeça, deveremos antes reunir mais evidências para nos munir de argumentos verdadeiros e válidos no momento em que, legitimamente, um praticante ou um profissional de saúde questione as nossas tomadas de decisão em treino.
E sim, eu sei que não existem estudos científicos para cada uma das tomadas de decisão durante um treino. Mas há uma lógica ou um raciocínio que deveria ter por base princípios dessas disciplinas basilares e não as ideias de carácter fechado de um guru qualquer.
Não compreendo como o famoso treino funcional continua com a mesma popularidade de há 14 anos quando me iniciei! E não compreendo como Tudor Bompa continua a ser referência bibliográfica em certos polos do ensino! Indivíduos que escreveram publicações sem quaisquer referências ou apenas baseados nas suas próprias experiências com os seus atletas???! Tudo isto implica uma postura para uma carreira inteira que só acontecerá se houver muita paixão pela profissão, um sentido de missão social, uma fome insaciável de conhecimento e humildade intelectual. Para bem de todos, quem não reunir estas características deveria procurar outro ofício.
Tudo isto se estende também aos profissionais do sector público, obviamente. Sejamos realistas: o acesso aos serviços de treino particular não é equitativo. Logo, estes profissionais são de suma importância no papel que desempenham nos programas de âmbito social e na promoção da importância dos inúmeros benefícios do exercício físico. E uma imagem dessas passa-se desenvolvendo mestria.
O treino de força terá mais ou menos sucesso consoante sejamos capazes de provar e fazer sentir nos praticantes que o fitness não mais quer tratar a generalidade das pessoas como se fossem atletas. O público é leigo mas não é estúpido. E mais cedo ou mais tarde tem noção do absurdo do que este tratamento implica. Vergar a biologia humana a um modo de se fazer exercício é o oposto de adequação desse mesmo exercício às características de cada um. As pessoas sentem isso mais cedo ou mais tarde.
Depois há a questão do iva ser taxado a 23% o que é absurdo num país que se diz vanguardista!
Para concluir, quero apenas dizer que temos um diamante em bruto para trabalhar. Aquilo que suspeitava-mos acerca dos muitos benefícios do treino de força em particular, vai cada vez mais tendo o crivo do empirismo da ciência. E esse é o terreno que só a nós diz respeito.
Paulino Moreira, Licenciado em Educação Física e Desporto
Treinador particular desde 2006, quer no âmbito da saúde, quer em contexto desportivo.
Foi praticante de ciclismo e atletismo, modalidades nas quais ainda presta consultoria na otimização biomecânica e fisiológica.
Professor e representante zona sul da Resistance Exercise Performance (curso Elements).